Godofredo não é muito fácil!
Mas digo isto por conta de
sua personalidade intuitiva, perspicaz e investigativa. Dono de um grande senso
de percepção, nunca aceitava uma idéia, uma proposta, uma afirmação
estereotipada ou não, sem antes acurar em mente e pensar pacientemente, porém,
firmemente sobre ela. Não caia na lábia de ninguém e quando olhava em nossos
olhos parecia que enxergava lá dentro da alma, como se soubesse o que
pensávamos. Era baixinho, considerando a média, pois devia ter em torno de um
metro e sessenta e cinco, porém, sua aparente força física associada a seu
temperamento extraordinário, transformava esse senhor de aproximadamente 55
anos em um gigante.
Homem simples, pai de dois
filhos igualmente simples. Sua esposa, talvez de igual força vital, era quem
mais contrariava suas idéias, mas, acho que fazia isso como uma brincadeira de
criança, pois os dois se zangavam e, logo depois estavam aos beijos e abraços. Costumava
dizer que tinham “os quatro pneus arriados, um pelo outro”.
Possuía um pequeno comércio,
semelhante às antigas mercearias. Ali encontrávamos desde aos picolés num velho
freezer a livros e revistas antigas, as quais trocavam, vendia e comprava. Não
fazia muitos negócios, mas o pouco que fazia lhe garantia a vida, Nita, sua
esposa, trabalhava fora e lhe ajudava na renda familiar.
Não me consta ter nenhuma
formação acadêmica, porém, não havia assunto que Godofredo não conhecesse
alguma coisa. Era capaz de manter intensa conversação com qualquer pessoa
independente de sua formação. Voraz leitor estava sempre com um livro em mãos;
tinha a impressão que ele havia lido todos os livros do mundo. Com o advento da
internet - que quase fundir a cuca para entender e aprender - vivia mergulhado
em leituras quando não estava atendendo alguém ou em longas conversações com os
mais diversos personagens de nossa cidade.
Ele próprio batizara o seu
estabelecimento de “O Observatório do Mundo”, isso depois que conseguiu comprar
um computador e instalar internet, dizia que estava ali, mas podia corria o
mundo todo. Evangélico de longa data, não gostava de discutir sobre religião,
mas se provocado era um arauto imbatível. Lembro de ter visto católicos,
espíritas, adventistas, russelitas, ateus e protestantes saírem do
“Observatório” com o rabo entre as pernas.
Certa feita um grupo de
ingênuos seminaristas que foram em busca de um produto que Godofredo vendia. De
repente, e por nada, começaram a discutir com ele sobre Teologia. Eles, como
que superiores, queriam demonstrar todo o academicismo dos futuros pastores e
pastoras. Godofredo, de chinelão de dedo, barba por fazer, demonstrando um
pouco de cansaço, começou a expor a eles um texto bíblico, discorrendo sobre
métodos hermenêuticos e exegeses, diferenciando a questão lingüística e
histórica com a simplicidade de quem fala a crianças que aqueles meninos
emplumados saíram tão aturdidos a ponte de esquecerem Berkof sobre o pequeno
balcão de embalagens.
Sempre que possível fazia do
“Observatório” meu ponto de parada, e desfrutava da grande amizade com
Godofredo e do café sempre fervendo que ele, sabendo do meu gosto, oferecia. Eu
o apelidava com a abreviatura de seu nome:
God, o que ele assentia de tal modo que Nita, sua esposa, passou a chamá-lo assim também.
Discutíamos sobre os mais diversificados temas e não raro orávamos juntos em
favor das almas ainda sem Cristo.
Fui numa dessas que a bravata
se deu.
Cheguei-me ao “Observatório”
no momento em que God terminava de prepara um extraordinário café, o cheiro
exalava sabor por todos os lados e nos convidando a regar um bom bate papo.
- Vamos chegando, irmão!
Disse-me abrindo o largo
sorriso e disponibilizando o velho banquinho dos amigos, e depois com seu
conhecido ar irônico:
– Quais as novas no mundo das
maravilhas? – era como se referia aos modismos evangélicos que surgem a todo
tempo.
- As velhas novidades de
sempre, God. Nada novo no front – Respondi despretensiosamente.
Nem bem nos acomodamos na
conversa quando um conhecido personagem adentrou no recinto. Roupa social,
gravata e tudo, Bíblia acintosamente de lado, em um pacote centenas de folhetos
tipo “santinhos”, foi entrando como se fosse uma prática diária sua, e como se
falasse para uma multidão quase berrou:
- A paz do Senhor, irmãos!
- A paz! – Respondemos quase
em uníssono, não pude deixar de perceber que God fechou a cara quase que
instantaneamente. “Ai vem pancada!” pensei.
Não sei se por causa do meu
jeito despojado, de bermuda, chinelo de dedo e camiseta básica, fui ignorado
pelo “irmão”. Ele mirando em God foi despejando seu intento:
- O irmão já tem candidato
para estas eleições?
- Que eu saiba não –
Respondeu God, não demonstrando interesse.
- Pois bem, irmão! Quero lhe
apresentar meu nome para que o irmão possa me honrar com o seu voto.
- É mesmo?!?!
- Sim! Quero ser eleito para
que possa realizar os desejos de nossa gente esquecida pela administração...
- Irmão – God segurando um
santinho, olhando-o atentamente, coçou a barba e disse – por que eu devo votar
em você?
- Bem... – Ele ajeitou a
gravata, fez um gesto de abrir a Bíblia que não chegou a se concretizar –
primeiro partimos do princípio que irmão vota em irmão...
- Com esse argumento você já
perdeu meu voto, amigo. Nunca senti tanta por ter votado em alguém, como senti
por ter votado nos candidatos que se diziam “evangélicos” nas outras eleições,
nunca fui tão traído em minha vida.
- Irmão, você não deve viver
do passado, tem olhar pra frente, pra Jesus.
- Não posso é viver alienado,
dopado pelo misticismo e é por olhar para Jesus que percebo toda a enrolação e
mentira dos dizem que são e não são.
- Irmão eu quero ser o
representante dos evangélicos...
- Amigo você tem ser o
representante de todos. Não devemos criar guetos. Exerça seu mandato cumprindo
seu papel, prezando o direito a justiça a todos, já chega dessa política que
segrega, privilegia e cria divisões odiosas.
- Nós precisamos ter
políticos que nos represente.
- Precisamos é de vergonha na
cara, precisamos é “SER”, quando de fato “SOMOS” seja lá onde estejamos
manifestaremos o Cristo em nós.
- Sendo eleito Deus vai ser
glorificado!
- De que jeito?
- Vou fazer culto naquele
local, distribuirei Bíblias...
- Você que meu voto pra isso?
Mostre seus projetos, e projetos, mano, não é só dizer o que se quer fazer como
uma ilusão pra boi dormir. Projeto tem dizer a possibilidade de ser
concretizado, tem que mostrar como fazer.
- Ah! Meu irmão, você tá
querendo muita coisa, não conheço nenhum que tenha isso.
- Pois eu não conheço nenhum
que mereça meu voto!
- Tá bom! Saiba que eu sou
diferente.
- Diferente? Faz vinte anos
que você cruza comigo indo para a igreja e nunca nem falou comigo, nunca nem me
saudou com a “paz”, agora só porque é candidato vem com esse pão dormido? Conta outra!
- Homem deixa isso pra lá!
Minha candidatura é fruto de visões e profecias.
E começou a entrar em transe,
ali, em nossa frente, com a mão nos olhos ia iniciar a sessão de cantalabaxuria,
quando God interveio com indignação.
- Se começar com esse
repleplé em meu estabelecimento vai sair daqui aos pontapés!
- Tem coragem de limitar o
espírito?
- Que espírito? Tenho coragem
de expulsar os vendilhões do templo – nesse momento God se pôs de pé e parecia
mais de dois metros de altura, seu olhar era capaz de atravessar até a alma de
aço.
O “irmão” recolheu seu
material saindo rapidamente do “observatório” rumo a outros locais.
Ficamos em silêncio um
tempo. Depois falei:
- Precisava disso, God?
- É no silêncio dos homens
que o mal prevalece! – respondeu.
E assim segue Godofredo e
suas bravatas, um anti-heroi contra um sistema que constrói falsos heróis,
falsos ideais, achincalhando o Evangelho. Segue (quase) solitário em sua luta
contra o misticismo sincrético que assola a Igreja, a ortodoxia morta repleta
com academicismo dos teólogos ocos e das hipocrisias farisaicas que se multiplicaram
entre o povo de Deus.
N’Ele, que nos dá plena
consciência.
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