sábado, 22 de setembro de 2012

As Bravatas de Godofredo ou A Saga de Um Consciente



Godofredo não é muito fácil! 

Mas digo isto por conta de sua personalidade intuitiva, perspicaz e investigativa. Dono de um grande senso de percepção, nunca aceitava uma idéia, uma proposta, uma afirmação estereotipada ou não, sem antes acurar em mente e pensar pacientemente, porém, firmemente sobre ela. Não caia na lábia de ninguém e quando olhava em nossos olhos parecia que enxergava lá dentro da alma, como se soubesse o que pensávamos. Era baixinho, considerando a média, pois devia ter em torno de um metro e sessenta e cinco, porém, sua aparente força física associada a seu temperamento extraordinário, transformava esse senhor de aproximadamente 55 anos em um gigante.
Homem simples, pai de dois filhos igualmente simples. Sua esposa, talvez de igual força vital, era quem mais contrariava suas idéias, mas, acho que fazia isso como uma brincadeira de criança, pois os dois se zangavam e, logo depois estavam aos beijos e abraços. Costumava dizer que tinham “os quatro pneus arriados, um pelo outro”.
Possuía um pequeno comércio, semelhante às antigas mercearias. Ali encontrávamos desde aos picolés num velho freezer a livros e revistas antigas, as quais trocavam, vendia e comprava. Não fazia muitos negócios, mas o pouco que fazia lhe garantia a vida, Nita, sua esposa, trabalhava fora e lhe ajudava na renda familiar.
Não me consta ter nenhuma formação acadêmica, porém, não havia assunto que Godofredo não conhecesse alguma coisa. Era capaz de manter intensa conversação com qualquer pessoa independente de sua formação. Voraz leitor estava sempre com um livro em mãos; tinha a impressão que ele havia lido todos os livros do mundo. Com o advento da internet - que quase fundir a cuca para entender e aprender - vivia mergulhado em leituras quando não estava atendendo alguém ou em longas conversações com os mais diversos personagens de nossa cidade.
Ele próprio batizara o seu estabelecimento de “O Observatório do Mundo”, isso depois que conseguiu comprar um computador e instalar internet, dizia que estava ali, mas podia corria o mundo todo. Evangélico de longa data, não gostava de discutir sobre religião, mas se provocado era um arauto imbatível. Lembro de ter visto católicos, espíritas, adventistas, russelitas, ateus e protestantes saírem do “Observatório” com o rabo entre as pernas.
Certa feita um grupo de ingênuos seminaristas que foram em busca de um produto que Godofredo vendia. De repente, e por nada, começaram a discutir com ele sobre Teologia. Eles, como que superiores, queriam demonstrar todo o academicismo dos futuros pastores e pastoras. Godofredo, de chinelão de dedo, barba por fazer, demonstrando um pouco de cansaço, começou a expor a eles um texto bíblico, discorrendo sobre métodos hermenêuticos e exegeses, diferenciando a questão lingüística e histórica com a simplicidade de quem fala a crianças que aqueles meninos emplumados saíram tão aturdidos a ponte de esquecerem Berkof sobre o pequeno balcão de embalagens.
Sempre que possível fazia do “Observatório” meu ponto de parada, e desfrutava da grande amizade com Godofredo e do café sempre fervendo que ele, sabendo do meu gosto, oferecia. Eu o apelidava com a abreviatura de seu nome:  God, o que ele assentia de tal modo que Nita, sua  esposa, passou a chamá-lo assim também. Discutíamos sobre os mais diversificados temas e não raro orávamos juntos em favor das almas ainda sem Cristo.
Fui numa dessas que a bravata se deu.
Cheguei-me ao “Observatório” no momento em que God terminava de prepara um extraordinário café, o cheiro exalava sabor por todos os lados e nos convidando a regar um bom bate papo.
- Vamos chegando, irmão!
Disse-me abrindo o largo sorriso e disponibilizando o velho banquinho dos amigos, e depois com seu conhecido ar irônico:
– Quais as novas no mundo das maravilhas? – era como se referia aos modismos evangélicos que surgem a todo tempo.
- As velhas novidades de sempre, God. Nada novo no front – Respondi despretensiosamente.
Nem bem nos acomodamos na conversa quando um conhecido personagem adentrou no recinto. Roupa social, gravata e tudo, Bíblia acintosamente de lado, em um pacote centenas de folhetos tipo “santinhos”, foi entrando como se fosse uma prática diária sua, e como se falasse para uma multidão quase berrou:
- A paz do Senhor, irmãos!
- A paz! – Respondemos quase em uníssono, não pude deixar de perceber que God fechou a cara quase que instantaneamente. “Ai vem pancada!” pensei.
Não sei se por causa do meu jeito despojado, de bermuda, chinelo de dedo e camiseta básica, fui ignorado pelo “irmão”. Ele mirando em God foi despejando seu intento:
- O irmão já tem candidato para estas eleições?
- Que eu saiba não – Respondeu God, não demonstrando interesse.
- Pois bem, irmão! Quero lhe apresentar meu nome para que o irmão possa me honrar com o seu voto.
- É mesmo?!?!
- Sim! Quero ser eleito para que possa realizar os desejos de nossa gente esquecida pela administração...
- Irmão – God segurando um santinho, olhando-o atentamente, coçou a barba e disse – por que eu devo votar em você?
- Bem... – Ele ajeitou a gravata, fez um gesto de abrir a Bíblia que não chegou a se concretizar – primeiro partimos do princípio que irmão vota em irmão...
- Com esse argumento você já perdeu meu voto, amigo. Nunca senti tanta por ter votado em alguém, como senti por ter votado nos candidatos que se diziam “evangélicos” nas outras eleições, nunca fui tão traído em minha vida.
- Irmão, você não deve viver do passado, tem olhar pra frente, pra Jesus.
- Não posso é viver alienado, dopado pelo misticismo e é por olhar para Jesus que percebo toda a enrolação e mentira dos dizem que são e não são.
- Irmão eu quero ser o representante dos evangélicos...
- Amigo você tem ser o representante de todos. Não devemos criar guetos. Exerça seu mandato cumprindo seu papel, prezando o direito a justiça a todos, já chega dessa política que segrega, privilegia e cria divisões odiosas.
- Nós precisamos ter políticos que nos represente.
- Precisamos é de vergonha na cara, precisamos é “SER”, quando de fato “SOMOS” seja lá onde estejamos manifestaremos o Cristo em nós.
- Sendo eleito Deus vai ser glorificado!
- De que jeito?
- Vou fazer culto naquele local, distribuirei Bíblias...
- Você que meu voto pra isso? Mostre seus projetos, e projetos, mano, não é só dizer o que se quer fazer como uma ilusão pra boi dormir. Projeto tem dizer a possibilidade de ser concretizado, tem que mostrar como fazer.
- Ah! Meu irmão, você tá querendo muita coisa, não conheço nenhum que tenha isso.
- Pois eu não conheço nenhum que mereça meu voto!
- Tá bom! Saiba que eu sou diferente.
- Diferente? Faz vinte anos que você cruza comigo indo para a igreja e nunca nem falou comigo, nunca nem me saudou com a “paz”, agora só porque é candidato vem  com esse pão dormido? Conta outra!
- Homem deixa isso pra lá! Minha candidatura é fruto de visões e profecias.
E começou a entrar em transe, ali, em nossa frente, com a mão nos olhos ia iniciar a sessão de cantalabaxuria, quando God interveio com indignação.
- Se começar com esse repleplé em meu estabelecimento vai sair daqui aos pontapés!
- Tem coragem de limitar o espírito?
- Que espírito? Tenho coragem de expulsar os vendilhões do templo – nesse momento God se pôs de pé e parecia mais de dois metros de altura, seu olhar era capaz de atravessar até a alma de aço.
O “irmão” recolheu seu material saindo rapidamente do “observatório” rumo a outros locais.
Ficamos em silêncio um tempo.  Depois falei:
- Precisava disso, God?
- É no silêncio dos homens que o mal prevalece! – respondeu.
E assim segue Godofredo e suas bravatas, um anti-heroi contra um sistema que constrói falsos heróis, falsos ideais, achincalhando o Evangelho. Segue (quase) solitário em sua luta contra o misticismo sincrético que assola a Igreja, a ortodoxia morta repleta com academicismo dos teólogos ocos e das hipocrisias farisaicas que se multiplicaram entre o povo de Deus.

N’Ele, que nos dá plena consciência.              

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